Dose Dupla #3 Reservas poéticas
Atualizado: 4 de jul. de 2020

Toda quinta, às 18h, acontece a live da Banca Vermelha. E o tema do nosso terceiro encontro foi CRIAÇÃO. Separamos livros e biografias que falam de origens, raízes, processos criativos e a arte de fazer. Também conversamos com o fotógrafo e professor Wladimir Fontes.
1_Biblioteca
_Criação, de Bhajju Shyam e Gita Wolf/Martins Fontes
por Mayara Maluceli
“Criação” é um livro feito em parceria por Bhajju Shyam e Gita Wolf. Bhajju é um dos mestres da arte gonde, da Índia Central; e Gita Wolf é uma editora indiana. Juntos criaram esse livro que é uma antologia de mitos gondes de criação.
A comunidade gonde é herdeira de um tesouro de contos orais, além de serem conhecidos por suas artes visuais presentes nas decorações das casas, tecidos e objetos.
A narrativa visual nos embala como um sonho. Para cada mito, aqui sintetizado em pequenas frases, acompanha-se uma ilustração complexa, repleta de camadas de significados. Por isso, talvez, exista uma pequena legenda em que conceitos são explicados de forma mais didática.
Começamos com o início de tudo: o nada. Que daí surge a água. Daí, o criador derrama o sopro da vida: o ar. Aquilo que hoje nos é tão caro.
O barro é criado em seguida pelas minhocas, chamadas de Rei do Mundo Subterrâneo pelos gondes. O barro dá origem aos sete tipos de terra.
E ainda do barro cria-se, faz arte. O barro não é só uma fonte de sustento, mas também de imaginar e produzir: casas, potes e lareiras. Na comunidade gonde, foram as mulheres que criaram a arte.
O Tempo surge em ideia de opostos, dia e noite, começo e fim, vida e morte. E ainda, as estações que regem o tempo como uma espiral, um ciclo. Os mais sensíveis marcadores do tempo são os insetos.
Aqui um dos trechos que mais gosto do livro:
O ovo original Animais e seres humanos originam-se do ovo. O ovo por sua vez está dentro do ventre do qual emerge toda a vida.
No desenho, o artista gonde imagina esse “ovo” como um ninho ou berço que abraça todas as formas de vida animal, como se tivessem originado de um só lugar, porém em vidas diversas.
Por fim, morte e nascimento: mais uma vez a ideia da dualidade do “tempo”. Afinal, todo fim torna possível um novo começo.
Impresso em serigrafia e em papel artesanal, não só por seu valor estético, mas conceitual, “Criação” é um livro belíssimo. Aqui são compartilhadas diversas metáforas para representar significados que vinculam a presença humana no planeta ao funcionamento do cosmo.
_Ritos do Nascer ao Parir, de Mana Bernardes/Bazar do Tempo
por Carolina Rolim
“O narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história.” (Walter Benjamin)
O livro de Mana Bernardes conta a história pessoal da artista e sua relação com as matriarcas da família, sua mãe Rute e as muitas mães pelas quais foi criada. Também conta sobre a relação com seu pai, irmãos, companheiro. Os capítulos são ritos enumerados. No Rito 1, ela abre com a frase que fez para a mãe ainda adolescente:
“Mãe, por que você coleciona vasos? Porque eles contêm vazios que me ajudam a criar vocês.”
E retoma essa mesma frase no Rito 94, depois de tantas vivências narradas:
“Não sei dizer o que trouxe como síntese minha mãe me fez e me desfez a mulher que sou cria e precisa se entregar cada vez mais.”
Como fio condutor da narrativa temos a cicatriz na barriga de Mana, que costura toda a cronologia de sua vida, as memórias, os traumas, as marcas. Escolhi falar desse livro porque é uma narrativa sobre o criar, sobre os caminhos que precisamos revisitar para abrir novos.
Mana construiu o livro em mais de dez mil páginas manuscritas em cadernos e a forma de sua caligrafia acompanha as linhas de sua cicatriz, expondo acima de tudo, sua própria necessidade:
“Não que eu precise ter um filho, mas preciso criar, e criar uma pessoa é o que acho pertinente para o milênio.”
Segundo a editora do livro, Camila Savola, “Mana faz ligação sem parar, e-mail, sexo – sozinha ou não – e dirige. Mana faz joias, colares, pulseiras, brincos. Mana lava louça, faz comida e sobe ladeira enquanto escreve. Mana faz mercado, resolve conta de luz, faz jantar pra mil pessoas ou uma do mesmo jeito que faz para si própria. Mana faz poesia e vive a poesia que fez. Mana respira e talvez não pare. Mana é do fazer.”, ratificando meu impulso primeiro em falar sobre Ritos nesse episódio temático sobre criação.
Ritos do nascer ao parir é um livro que acende nossas próprias experiências de criadoras, mães, filhas, criaturas. É um livro sobre origem e nesse processo de desenvolvimento humano, precisamos reconhecer as raízes do nosso ser.
2_Biografia
_Rosana Paulino
por Mayara Maluceli
Rosana Paulino é artista visual, pesquisadora e educadora.
Mulher periférica e preta, criada na Freguesia do Ó, em São Paulo.
A arte nasce para Paulino desde a infância, quando, em vez de brincar de boneca, desenhava personagens. Além disso, a casa onde morava era próxima a um rio, e a terra enlameada permitiu criar figuras e objetos.
Desde os anos 1990, investiga questões que eram pouco discutidas no cenário artístico brasileiro, como gênero, identidade e representação negra.
“O que é ser artista? É algo ligado à questão de ter voz”
Quando ia ao museu, não se via representada, e se incomodou. Ainda é difícil ver a população representada em museus, se não for uma exposição temática.
Mas não é difícil ver os negros em museus. As pessoas pretas costumam ser objetos de representação, mas possivelmente na ótica de um artista branco, ou seja, de uma pessoa não pertencente àquela população. A cultura brasileira ainda é muito euro-cêntrica. Não reconhece as especificidade da sua população tão rica culturalmente.
Percebendo tudo isso, Paulino, em sua arte, tenta entender o local ocupado pela população negra no país. Para isso precisa conhecer melhor a história do país. E assim, como artista negra começa a criar arte sobre a história da escravidão.
Obra Parede da Memória:
É com essa instalação que Paulino ganha visibilidade no mundo das artes. Ao reproduzir retratos de familiares em almofadas costuradas manualmente como se fossem patuás, Paulino cria um manifesto sobre a “classificação” etnográfica da população negra no país.
Obra Assentamento:
O conceito nessa obra fala sobre o trauma das pessoas escravizadas. Ou seja das pessoas que foram retiradas de seus ambientes, sequestradas, jogadas em um porão de um navio, e inseridas em um local totalmente diferente que se fala outra língua.
Como lidar com essa questão traumática na arte?
A solução que Rosana Paulino encontrou foi fazer uma imagem de pessoas escravizadas em tamanho natural, recortou e re-costurou.
Mas a costura não fecha.
Dessa forma, ela mostra essa separação.
Ou melhor, esse refazimento que não existe.
Como artista, Paulino entende que cada técnica é desenvolvidas, após entender o que gostaria de comunicar conceitualmente. Nesse sentido, ela recorre ao desenho, vídeo, desenho digital, à costura, gravura, cerâmica, fotografia.
_Jarid Arraes
por Carolina Rolim
Escritora cearense, de Juazeiro do Norte, região do Cariri, começou escrevendo cordel inspirada pelo pai e avô, ambos cordelistas e xilogravadores. Queria dar continuidade a essa tradição na família(*), mas como ela mesma diz, queria fazer isso de um jeito subversivo, diferente de tudo o que sempre tinha lido no cordel, e fez isso com cordéis que contam histórias de mulheres negras.
Jarid é autora de mais de 70 títulos de cordel, trabalho ao qual se dedicou por 4 anos, entre pesquisas e escrita das biografias presentes no livro “Heroínas Negras Brasileiras”, no qual reuniu 15 cordéis, contando a história de Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.
No prefácio desse livro, a Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus escreve:
“O trabalho dessa mulher sempre me fascinou. Das postagens aos cordéis, nada que sai da mente e do coração de Jarid é raso, e sim profundo de razão e sentimento. Eis a marca de sua identidade própria, de sua originalidade, mas também de uma rica tradição, de uma memória coletiva da família, do Cariri, que se traduziu na escritura dessa mulher negra.”
Jarid tem outros livros publicados, de poesia, romance e o mais recentemente lançado livro de contos “Redemoinho em Dia Quente”. Para escrevê-lo, ela voltou ao Cariri:
“Escrever sobre o interior do Ceará, escrever sobre o sertão, era uma coisa que me importava muito. Até porque eu queria escrever pela minha ótica. (...) Eu acho que muitas mulheres não têm essa oportunidade de contar a própria história.”
“Você é inserida em uma realidade de uma tradição tão forte, do interior, cercada de racismo. Como não ter traumas? Esse livro (Redemoinho) é um grande fazer as pazes com o Cariri, me encontrar como daquela terra e ver a beleza nisso.”
Em seu instagram (@jaridarraes), a escritora compartilhou algumas passagens do processo de escrita do livro, com o qual ganhou o prêmio APCA em 2019.
(*) No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, um grupo de poetas populares do Nordeste do Brasil deu forma impressa à tradição oral. João Martins de Athayde teria sido o primeiro poeta popular a se estabelecer no ramo gráfico-editorial, se instalando com tipografia em 1909. Foi também com Athayde que se deu a sujeição da criação poética ao espaço disponível, fixando-se os padrões dos folhetos e o número de páginas, sempre em múltiplos de quatro: romances de 24 a 56 páginas; folhetos de 8 a 16 páginas, classificação ainda hoje utilizada. O sucesso editorial de Athayde levou outros poetas e algumas gráficas que editam livros e revistas populares a entrar no ramo da edição de folhetos. Em 1949, após um derrame cerebral, João Martins de Athayde vende seus direitos de editor a José Bonifácio da Silva, seu revendedor em Juazeiro do Norte, estabelecido com uma pequena tipografia desde 1936. Juazeiro do Norte torna-se, assim, o centro editorial da literatura de cordel.
3_Entrevista
Eu te conheci no curso de Poéticas Visuais, no ateliê que você tinha no Butantã. Você foi professor do Senac, algumas pessoas que eu conheço foram alunes. Pode contar pra gente a sua trajetória como educador? Como é ser trabalhador da educação nesse momento?
Comecei a fotografia no Museu Lasar Segall com 15 anos. As duas atividades se misturaram, na época. No Museu eu trabalhava no grupo de linguagem fotográfica como monitor de laboratório fotográfico preto e branco; e logo em seguida, eu comecei a dar aula no Imagem e Ação.
Então a atividade da fotografia como pesquisa, autoral, linguagem, começa como atividade de dar aula. Sempre fui um fotógrafo e um educador de fotografia. Às vezes, acho estranho essa especificidade, mas é basicamente: só fotografia.
Isso me deu tempo para desenvolver uma fotografia mais autoral, mais de pesquisa com a linguagem, mais desvinculada ao mercado. Não que eu não tenha trabalhado no mercado… Mas a atividade de professor é a que mais permite que você fotografe mais tranquilamente.
Outro dia eu estava pensando que essa carreira é uma carreira acadêmica. Sou um artista acadêmico (rs).
Fiz um mestrado na ECA em Poéticas Visuais, o doutorado também na mesma linha. Depois no Instituto de Artes da UNESP, o pós-doutorado. As três têm em comum a atividade de um ensaio fotográfico em livro. Inclusive, o boneco do livro do pós-doc, pretendo editar com a editora de vocês (+UM Coletivo).
Como é o processo de orientar trabalhos artísticos?
Tenho prazer em orientar trabalhos artísticos, acompanhar, desenvolver.
Ainda que eu fique preocupado, porque dá muito medo de interferir na poética de alguém, do modo como a pessoa vai fazer.
Geralmente, fico mais preocupado com as pessoas que não fazem, por preguiça ou bloqueio. Do que com as pessoas que já estão desenvolvendo.
Os que eu tenho que orientar menos são os que eu fico mais tranquilo (rs).
No início da quarentena trocamos ideias sobre: Agnés Varda, anarquismo e Maiakóvski. O que precisa prevalecer agora? Como sermos desobedientes, criativos e anticapitalistas?
Tentar costurar tudo isso… Vamos lá.
Começar por Maiakóvski, o poeta rubro da coragem. Ele é autor de várias frases muito boas para a quarentena, como “antes morrer de vodca do que de tédio”. Tem também outra: “não existe revolução sem forma revolucionária”. Talvez por esse ponto de vista da vanguarda, em que brincava com a forma, e buscava o novo com bastante coragem, que eu aproximo o Maiakóvski de Agnès, na tentativa disso de desenvolver isso que a gente chama de “filme” ou “audiovisual”, de forma livre e corajosa. Agnès é mais conhecida como cineasta do que como fotógrafa, apesar de toda obra ter uma citação sobre a fotografia. Agora no final da vida que ela conseguiu ter uma exposição muito maior, tão importante quanto Godard.
A dica de dois pequenos filmes de Agnès: "Ulisse" é um curta sobre uma fotografia. E "Daguerreótipo", sobre a rua onde ela morava, a rua que leva o nome de um dos inventores da fotografia. São exibidos retratos fantásticos dos comerciantes antigos da rua.
É possível encontrar esses filmes de forma pirata, aí entra no terceiro elemento que é a anarquia (rs).
Wlad, vamos falar de você como criador? Fala um pouco sobre esse trabalho: No tempo dos homens de máscaras.
De alguma forma, sintetiza minhas obras poéticas. Em 2008, eu vi essa máscara, fotografia e anotei. Comecei a reparar nos noticiários, notícias e fotografias que continham esse fenômeno: pessoas com máscaras. O uso da máscara como símbolo de terrorismo, assalto, protesto, máscara para saúde, para ciclista, máscara para proteger da poluição. Aí comecei a reparar que havia um trabalho: por que desse tempo em que a humanidade começa a vestir a máscara?
O que mais me interessou nessa máscara especificamente que tampa a identidade, é que tem uma relação com a fotografia. Lá na Comuna de Paris, os revoltosos integrantes da comuna pousaram ingenuamente para fotógrafos, com orgulho das barricadas, e depois essas fotos foram usadas pelo Estado francês para reprimi-los.
Essa fotografia ensinou que não é bom você identificar sua cara nas manifestações.
Em 2013, percebemos isso em grupos que tiveram como lição o uso das câmeras. Ainda mais num tempo em que vivemos em que as câmeras estão espalhadas por todos os lugares.
O trabalho também tem apropriacao de print de telas da época, de filmes, desse fenômeno. É um trabalho que eu me aproprio dessas imagens, ou de um desenho ou de uma fotografia que já existe na imprensa. Ou, então, a própria imagem que já existe, eu corto, recorto e, assim, passa a ser minha, nesse trabalho. Esse contexto da autoria é bastante fluido.
Eu acho que agora esse trabalho se anula. Praticamente todas as imagens de " No tempo dos homens de máscaras" são de várias situações em que você cobre o rosto para proteger: a identidade, a vida, a saúde, a cidadania, a ideologia. Na época também tinha máscara da saúde, de um modo geral, nos países asiáticos, que já era um hábito.
Quando mostrei esse trabalho para o Lourenço Mutarelli, eu comentei que vi esse sujeito que colava um lambe no poste, e em seguida, outra pessoa retirava o lambe. E foi assim sucessivamente, quase como uma performance
E aí sugeri que a gente refizesse essa cena na cidade, como uma intervenção, permeando ficção e documentário. Então, eu colava o lambe, e ele arrancava. Ou seja, traz a ideia de que alguém está monitorando sua ação, de que alguém te segue e desfaz o que você faz.
É um vídeo cíclico.
Para finalizar, você teria alguma referência para compartilhar com a gente? Algo que surgiu por esses dias?
Queria citar aqui cinco artistas pretos brasileiros:
Mário de Andrade
Eustáquio Neves
Walter Firmo
Luis Paulo Lima
Rosana Paulino
E gostaria de finalizar com essa ideia sobre poética que aprendi com Evandro Carlos Jardim. A poética se funda em uma base triangular: o fazer, o estudar, o mostrar.
No Spotify, criamos a playlist da Banca Vermelha. Para cada live, selecionamos algumas músicas que se relacionam com o tema. <3