Dose Dupla #1 Vejo flores em você
Atualizado: 4 de jul. de 2020

Botânica foi o tema da primeira live da @abancavermelha, que aconteceu no Instagram, na quinta-feira, 21.05.2020
Para a live, preparamos um roteiro dividido em 3 blocos:
1_ Biblioteca_ Apresentamos publicações que temos em nossas estantes: "Herbário", de Simone Moraes, e "Jardim de Seu Neca", de Ana Rocha.
2_ Biografia_ Também falamos da vida e obra de duas mulheres relevantes no mundo da botânica e na criação artística: Anna Atkins e Rosana Palazyan.
3_ Entrevista_ E por fim, uma conversa com a artista Iza Guedes falando de seu trabalho com monotipias (e outros assuntos).
Aqui um resumão das principais referências comentadas na live.
1_ Biblioteca
_O Jardim de seu Neca, de Ana Rocha (Polvilho Edições)
por Carolina Rolim
Essa talvez (quase certeza) tenha sido a primeira publicação independente da minha biblioteca. Eu conheci numa visita à Banca Tatuí e comprei, apaixonada. Veio com 3 pequenos envelopes que continham sementes. Lindo.
Ana Rocha é a autora que nos convida a um passeio pelo jardim do seu Neca, por meio de serigrafias de folhas organizadas num catálogo que ela chama de “inventário botânico afetivo”. Seu Neca é quem descreve as plantas e suas especificidades, como se fizesse versos de amor. As páginas têm cheiro, a capa do livro é feita com um tecido parecido com lona (que não sei dizer se é mesmo), verde-escuro, as páginas em papel pólen cortadas em formato retangular, encadernado com técnica japonesa e costura aparente. Só pelo objeto já é afetivo, dá vontade de apertar contra o peito.
No fim da publicação tem um texto assinado por Gigi fada-madrinha, fazendo uma analogia entre as nomenclaturas científicas e as características apontadas por seu Neca:
“(...) tanto na síntese descritiva, da matriz lineana, como nas descrições de seu Neca, pode-se dizer que há uma correspondência implícita, um espelhamento, entre o céu e a terra, indiciando um criacionismo de fundo: observar atentamente a natureza é ler o Livro da Criação.”
Recentemente, a Polvilho Edições anunciou em seu instagram que abriu a última caixa dessa leva, então pode ser que acabe (em breve). A gente quer vender aqui na Banca Vermelha, com certeza, mas por enquanto está disponível na lojinha virtual delas.
E só pra mostrar um pouco do caminho que me fez cruzar com o livro “Jardim do seu Neca”, compartilho com vocês o vídeo que fiz com a Mayara sobre o seu Santinho, um grande mestre que conheci no Vale do Capão, Bahia.
_Herbário, de Simone Moraes (Deep Editora)
por Mayara Maluceli
Herbário é um grande guia para ervas medicinais. É fruto de uma residência na Fazenda São João (RJ) em que os poderes da artista Simone, do biólogo Victor Keller e da cozinheira Sandra Azevedo se unem em prol de um compilado incrível de medicina natural.
Simone comenta que viveu muito tempo na fazenda e que tinha intimidade com a horta, porém com o auxílio de Sandra aquele contato que pressupunha ser natural tornou-se mais cuidadoso e atento.
"O fato de Sandra, a cozinheira da Fazenda, entender tanto das ervas medicinais, me fez olhar para a horta orgânica, onde a maioria das ervas estava (...) e olhar para a mulher que Sandra é: uma pessoa tão sábia, generosa, guardiã de um conhecimento ancestral, que faz receitas diversas e com o capricho de finalizar cada prato com detalhes para os olhos!"
O projeto foi realizado com muita minúcia: desde a coleta das ervas até a catalogação das receitas cruzada com conhecimentos científicos. E ainda, de forma muito didática, o livro traz detalhes de como montar seu próprio herbário.
Para algumas pessoas, pode ser o primeiro passo para a medicina natural, como também um complemento na biblioteca de cozinha!
2_ Biografia
_Rosana Palazyan
por Carolina Rolim
A artista visual carioca é descendente da diáspora armênia. No centenário do genocídio armênio*, Rosana foi convidada a integrar um grupo de artistas para expor na Bienal de Veneza de 2015, no Pavilhão Armênio. Nessa ocasião, ela fez uma imersão na sua história pessoal e criou uma videoinstalação, além de apresentar a série “Por que daninhas?”, com objetos apresentados como relicários.
Essa série foi o ponto de partida para uma pesquisa sobre a trajetória da artista. “Por que daninhas?” é composta por ervas daninhas coletadas (de 2006 a 2015), dispostas sob um tecido fino e transparente, bordadas com fios de cabelo da artista.
Rosana sempre teve bastante envolvimento com questões de exclusão social (especialmente no Rio de Janeiro, sua cidade natal). Desenvolveu trabalhos com pessoas em situações de rua, pessoas que sofreram violência doméstica, policial; racismo, genocídio.
“Em 2006, comecei a cultivar plantas consideradas daninhas – algumas eram pequenas e delicadas, outras arbustos. Com o tempo surgiram lindas flores, porém de uma beleza classificada nos livros como não comercial, tal qual o conceito de beleza utilizado no mundo capitalista contemporâneo – para ‘aqueles que não satisfazem a interesses econômicos imediatos’.”
As frases que a artista bordou nas raízes das ervas expostas na série são expressões utilizadas na catalogação das plantas consideradas daninhas em livros de agronomia.
“Frases como: ‘poderia crescer em seu lugar algo de uma beleza mais exuberante’ ou ‘são vistas como inimigos a serem controlados’ são muito semelhantes às palavras que ouvi de algumas pessoas, durante a pesquisa nas ruas e meu envolvimento com pessoas que vivem em situação de rua.”
A artista descreveu esse trabalho num texto que pode ser conferido na íntegra aqui.

*Durante o domínio do Império Otomano, a ideia de independência começou a ganhar força entre os armênios. Com isso, o império começou, em 1909, um massacre que matou 20 mil armênios. Além disso, durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano estava recrutando soldados para a guerra. Muitas minorias étnicas eram contra o recrutamento, inclusive os próprios armênios. Com isso, em abril de 1915, o governo turco reuniu 250 líderes da comunidade armênia no império, sendo que alguns foram deportados e outros executados. Depois de privar o povo de seus dirigentes, começou a deportação e o massacre dos armênios que habitavam os territórios asiáticos do império.O genocídio armênio é considerado o primeiro massacre do século XX. Aconteceu entre 1915 e 1923, deixando um rastro de mortes estimadas em 1,5 milhões de pessoas. Nos últimos anos, o governo turco tem enfrentado seguidas reivindicações para reconhecer o episódio como um genocídio. Até o momento, 29 países reconheceram oficialmente os assassinatos em massa como um genocídio, uma visão que é compartilhada pela maioria dos estudiosos e historiadores deste período histórico.
_Anna Atkins
por Mayara Maluceli
Nascida na Inglaterra, Anna Atkins tem uma história bastante curiosa no mundo da fotografia.
Sua trajetória foi bastante privilegiada, pois contou com herança familiar e um pai
muito presente e entusiasta dos estudos. Seu pai que era químico acreditava que a filha fosse capaz de realizar qualquer atividade, independentemente do gênero.
Eles trabalharam juntos em algumas publicações de botânica: ele fazia a pesquisa, e
Anna fazia as ilustrações. Aí começou seu interesse pela botânica.
Em alguns relatos, ela descobriu a técnica de fotografia de cianotipia sozinha; em
outros, ela foi apresentada a John Herschel que ensinou a técnica.
O que é cianotipia? De forma mais amadora, a cianotipia é uma técnica fotográfica que utiliza químicos para tornar uma superfície sensível à luz. Assim, ao colocar qualquer objeto sobre essa superfície sensibilizada, fica registrada a “sombra” desse objeto.
Independentemente de como ela chegou à técnica, ela se desenvolveu na cianotipia,
confiando apenas na própria intuição para controlar o tempo de exposição de suas
criações. Em mais de 10 anos de estudo, Anna Atkins criou mais de 10 mil cianotipias de botânica.
E assim, em 1843 ela criou e publicou o primeiro livro ilustrado com fotografias da
história – um guia botânico que trazia imagens de algas que ela mesma coletava e
fotografava.

Por isso, a inglesa é considerada a primeira fotógrafa mulher do mundo.
O livro foi publicado com o seu próprio dinheiro, então, pode-se afirmar que foi uma publicação independente.
No entanto, ela não foi reconhecida como pioneira por muito tempo. Primeiro, que o livro foi assinado apenas por “AA”, o que alguns analistas da época creditaram a “anônimos amadores”. Segundo que os botânicos preferiam os desenhos às
cianotipias, pois acreditavam que as ilustrações poderiam trazer mais detalhes. E terceiro que Anna Atkins não comercializou o livro e só os distribuiu para o meio acadêmico, pois essa era a intenção: criar conteúdo científico.
O reconhecimento de Anna Atkins só apareceu mais de 100 anos mais tarde, em um
estudo do inglês Larry Schaaf sobre o primeiro livro de fotografia.
3_ Entrevista
Iza, a gente pede pra você se apresentar e contar algo que queira sobre como tem passado essa quarentena. Por exemplo, como é passear com a sua cachorra Esfiha e como é lidar com os protocolos de saída/chegada em casa? Ou outra coisa que queira comentar.
Esses dias eu estava conversando com uma pessoa muito querida que se
chama Maré justamente sobre a dificuldade de ser quem a gente é porque,
afinal, quem somos nós? Somos um conjunto de histórias e vivências que
guiam as nossas ações no mundo. Um compilado de desejos realizados e não
realizados que trazem luz às nossas frustrações. Às vezes insegurança e baixa
autoestima também. Assim como todo indivíduo, eu sou, então, uma pessoa
diversa. Meu nome é Iza Guedes, moro na zona norte de São Paulo e convivo
diariamente com a minha cachorra Esfiha e com plantas que estou
aprendendo a cuidar e que cuidam de mim também, somos uma grande
família unipessoal.
Sou uma pessoa que se serve das ferramentas das artes visuais, principalmente
da fotografia e da monotipia pra materializar sentimentos, desejos,
perturbações, medos, intenções, mas sobretudo para educar, instigar a
curiosidade e ampliar a visão de maneira plástica, estética e imagética porque
eu acredito que, dessa forma, seja mais simples e bonito acessar o
conhecimento. Acho que quando a gente trabalha com formas, cores, texturas e
cheiros, a gente tem a oportunidade de acessar memórias ancestrais que
permitem nos conectar enquanto seres da natureza e não apenas cidadãos,
fazendo com que o respeito e o cuidado aconteçam espontaneamente, sem que
a gente tenha que criar campanhas pra dizer pras pessoas que elas precisam
jogar o lixo no lixo, por exemplo.
A gente se conheceu numa oficina de fotografia. Desde então, nossos caminhos sempre tangenciaram a educação. Você é formada em Artes Visuais. Como você vê o papel das artes na educação das pessoas, o que você pode compartilhar com a gente desse lugar de educadora?
Eu vejo as artes e a ciência no mesmo lugar, elas andam juntas e, mais
ainda, de mãos dadas. A arte não é só o desenho bonito, uma pintura bem
feita ou aquilo que a gente faz nas horas vagas, arte é diálogo. Arte também
não é só aquilo que a gente vê nos museus e nas galerias. Penso que a arte é
a sensibilização e a chave de acesso à ciência, embora a escola nem sempre
(quase nunca) fale isso, o que torna o ensino da arte nas salas de aula algo
completamente dispensável. É como se aquela aula fosse uma aula vaga.
Eu acredito que a educação não é sobre passar conhecimento, mas sim a
construção horizontal do saber. Por isso que quando participo de uma oficina,
seja como aluna, seja como educadora, eu tanto ensino quanto aprendo. E das
vezes que tivemos a oportunidade de trabalhar juntas isso foi ainda mais forte
de perceber. Acredito também que a educação, para além dos muros da escola,
é o que a gente pode fazer onde quer que a gente esteja, inclusive nas redes
sociais.
Recentemente você postou no seu instagram um texto sobre Cegueira Botânica. Eu gostaria que você comentasse como chegou nesse assunto e como você passou da cegueira para a visão.
Eu gosto muito do encontro, e gosto muito da maneira como as coisas se
encontram também. Acho que os caminhos se cruzam quando a gente tá
ligado, tá atento, disposto, curioso, interessado. Então, eu já tava surfando
nessa onda há algum tempo, procurando respostas pras dúvidas que ainda
estavam se formando dentro de mim, quando num determinado dia eu
estava dirigindo e ouvindo rádio, sim, duas coisas que eu gosto muito: dirigir
e ouvir rádio, e um professor de biologia estava falando pontualmente sobre
esse conceito de Cegueira Botânica, que é a falta de habilidade que nós, da
espécie humana, temos em perceber as plantas em seu ambiente, não
damos a devida importância dentro do planeta Terra como a gente dá pra
outros organismos vivos, tratamos as plantas como seres inferiores, não
reconhecemos sua importância biológica e também estética. Perceber a
biodiversidade é mais uma chave pra entender que a diversidade é
importante na construção de um lugar em que todos os seres possam viver
em harmonia.
Passar da cegueira pra visão levou um tempo longo pra mim que fui criada
dentro do apartamento, acho que por isso, inclusive, que a Cegueira Botânica
faz tanto sentido hoje pra mim. Mas como todo caminho é um caminho, pude
encontrar nele pessoas muito carinhosas e delicadas que me pegaram e me
pegam pela mão o tempo todo e me mostram seus saberes, me fazem ver.
E isso começou a me instigar ainda mais quando eu comecei a costurar tudo
nessa teia de conhecimentos e sentidos. Que inclui alimentação, arte, medicina
das plantas, biologia. Eu gosto de tudo que se relaciona e se amplia em si
mesmo.
Seguindo nessa pegada, você tem um trabalho (e eu diria também um grande estudo) sobre monotipias. Quer falar um pouco pra gente como é a sua técnica, o que você mais curte nesse processo, como faz e se pode mostrar alguma monotipia pra gente? :)
Bom, a monotipia é a impressão única de alguma coisa. Nesse caso, eu
uso as folhas das plantas como matriz. É um processo simples em que você
passa a tinta na planta e carimba a superfície, o suporte que você quer
imprimir. Costumo usar a tinta tipográfica e rolo de xilogravura no processo
pra conseguir maiores detalhes dos desenhos das plantas, mas também
trabalho com guache e acrílica, que me dão outros resultados diferentes e
incríveis também. É uma técnica muito legal de ensinar.
A parte do processo que eu mais gosto é a de colher as plantas. Nem sempre é
do mesmo jeito, nem sempre nos mesmos lugares, varia do lugar onde eu
estou. Gosto de trazer folhas dos lugares por onde eu passo. Mas é claro, que a
maior parte do tempo eu faço isso no meu bairro mesmo, porque eu preciso
manter esse contato com a terra em dia para não surtar. Tenho uma relação
muito forte com os elementos ar e terra e, para não voar demais, preciso
sempre colocar a mão a mão na terra e manter um laço constante de
aproximação.
No Spotify, criamos a playlist da Banca Vermelha. Para cada live, selecionamos algumas músicas que se relacionam com o tema. <3