Primavera no olhar da janela
Atualizado: 13 de set. de 2020
por Paola Maluceli

“Aqui, o prado onde pastam os cavalos já se cobriu de flores primaveris e as brisas sopram docemente [...] Vem, Cípris, coroada de grinaldas, e, graciosamente, nas douradas taças o néctar ligado aos festins derrama”
(trecho do poema Um jardim da Safo)
Estação do ano mais criativa e cheia de representatividade na literatura, a primavera instiga os autores de todos os tempos a referir-se a ela nas possibilidades de escrita e construção imagética. Desde a Antiguidade, com a Safo cantando uma sedutora primavera à Idade Média, temos imagens de pássaros cantando, pousados em ramos em flor.
No Renascimento, Camões nos presenteou com uma das passagens mais líricas de sua epopeia com uma Inês de Castro sossegada, colhendo o doce fruto, nos campos do Mondego, enquanto ensina às ervinhas o nome que tem cravado em seu peito. Referências imagéticas que levam o pensamento do leitor ao cenário idealizado de uma primavera cheia de aparente paz, harmonia, amor, sedução e esperança.
Escritor russo, Liev Tolstói, escreveu muitos contos entre o final do século XIX e início do século XX sobre assuntos vários, da destruição do inferno às memórias de um marcador de pontos de bilhar, que não nos remeteria à primavera literária por seu tema soturno. No entanto, a saudosa que pela saudosa Cosac Naify uniu esses contos às experiências fotográficas inovadoras de Serguei Mikháilovitch Prokúdin-Gorskii, em Contos Completos. Resultado? A vivacidade colorida que remete nosso olhar à lembrança mais primaveril do sótão de nosso cérebro.
Jeremias Gotthelf, suíço, associa, em sua novela Aranha negra [1] as pestes relatadas na Bíblia, em lendas e sagas medievais a festa de batizado de uma criança às estações do ano, em que a primavera será o símbolo de um recomeço para aquelas personagens.
Martha Batalha conta a história da Eurídice Gusmão, em A vida invisível de Eurídice Gusmão, mulher que aprendeu a ser invisível a fim de evitar o dissabor das frustrações, com o frescor de uma brisa da tarde. Leitura sinestésica, para falar o mínimo desse romance, recheado de cores, sabores e dissabores de um Rio de Janeiro que não existe mais.
Agualusa? Como não falar de José Eduardo Agualusa para compor uma lista de livros primaveris? O romance O vendedor de passados, conta-nos a história de um negro albino que gosta de música brasileira e que ganha a vida vendendo passados falsos para as novas pessoas influentes de uma Angola que se reergue após uma guerra que parecia não acabar. A primavera angolana, seu renascimento e suas consequências. O que mais encanta são os ângulos inusitados que o narrador descreve o ambiente e as ações das personagens; uma hora do canto superior esquerdo do teto, outra hora, de debaixo de algum móvel, criando certo desconforto no leitor como as rajadas de vento que a primavera pode nos proporcionar.
Adriana Lisboa, carioca, narra de modo não linear a vida das irmãs Clarice e Maria Inês no interior de uma fazenda do Rio de Janeiro em Sinfonia em branco. Além de ler, você ouvirá músicas, verá pinturas e lerá outros textos nos intertextos.
E nada mais digo, porque cabe a você, leitor, abrir sua janela e apreciar esse jardim literário que se desvenda na frente de seu olhar.
[1] Essa novela possui uma afinidade importantíssima com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa por narrar a história de um pacto com o diabo.
Paola Maluceli é mestre em linguística, professora de literatura e de produção de texto.